Poucos dias após o cantor David Bowie ter falecido, jornais do mundo todo anunciaram uma homenagem feita pelo Observatório Mira, na Bélgica, que teria designado uma nova constelação com o nome do músico, um dos mais influentes da história do rock.
A ideia surgiu de um projeto chamado Stardust For Bowie, uma colaboração entre o estúdio belga Brussel e o observatório. O estúdio desejava dar ao famoso “Camaleão do Rock” seu tribuno definitivo ─ no firmamento.
A escolha foi o famoso raio que aparece no rosto do cantor no álbum Aladdin Sane. Para isso, eles decidiram procurar sete estrelas que se encaixassem perfeitamente na forma. E não é tão fácil quanto parece.
Uma nova constelação?
Em muitos veículos da mídia, a notícia foi divulgada como sendo o batismo de uma nova constelação. Mas, na realidade, não foi nada disso.
Tratou-se de uma bela homenagem, sem dúvida, mas feita de maneira informal. Nenhuma mudança nos atlas estelares está em curso.
Para a Astronomia, constelação é uma área da esfera celeste, o globo imaginário que envolve a Terra com o firmamento.
Essas áreas foram definidas pela União Astronômica Internacional (IAU) em 1930 em torno de padrões formados por estrelas que, unidas com traços imaginários, lembram a silhueta de animais, personagens e objetos, segundo a cultura ocidental, e remontam a Antiguidade Clássica.
A Astronomia moderna reconhece um total de 88 constelações (veja lista completa). Elas abrangem todo o céu, de modo que qualquer coisa que venha a ser descoberta no Universo necessariamente estará na área de uma delas.
Assim como no mapa-múndi, também podemos mapear todo o céu com a ajuda das constelações. Elas são como uma espécie de máscara. Há estrelas em “primeiro plano” (que são visíveis a olho nu e formam as figuras clássicas), mas as constelações também são “transparentes” e, como janelas, nos permitem enxergar o “infinito” através delas. Imagem: Wikimedia Commons.
Asterismo
Mas a homenagem a Bowie não é uma 89ª constelação. Nem tampouco o desmembramento de constelações já existentes. E o que é, então? É “quase” um asterismo.
Um asterismo é um padrão qualquer de estrelas que reconhecemos facilmente. As Três Marias, por exemplo, é um famoso asterismo que se encontra na constelação de Órion. É importante frisar: as Três Marias não são uma das 88 constelações oficiais. São apenas três estrelas brilhantes que destacamos no céu.
Às vezes um asterismo é grande o bastante para se destacar em quase toda a área de uma constelação. É o caso do Big Dipper (a Grande Concha), na constelação da Ursa Maior, e do Bule de Chá, em Sagitário. Também pode ser miúdo como as Plêiades, em Touro.
A constelação em si é sempre maior. O asterismo é um destaque. E pode até abranger estrelas de mais de uma constelação. Teria sido este o caso da homenagem a Bowie, não fossem alguns detalhes importantes.
Para formar os vértices do raio de Aladdin Sane, os astrônomos do observatório belga escolheram as sete estrelas da tabela a seguir.
Estrela | Constelação | Magnitude aparente | Observações |
---|---|---|---|
Brachium | Libra | 3,25 | Estrela sigma da constelação de Libra. Difícil de ver no céu urbano de uma grande cidade. |
Spica | Virgem | 0,97 | Estrela mais brilhante de Virgem e uma das mais importantes do céu. Fácil de ver. Está representada na bandeira do Brasil acima da faixa com o lema ”Ordem e Progresso”. |
Zeta Centauri | Centauro | 2,55 | Um pouco mais brilhante que Brachium, fica nas vizinhanças do Cruzeiro do Sul. |
SAO 214132 | Centauro | 9,5 | Fraca demais para observação a olho nu |
SAO 241641 | Centauro | 9,2 | Fraca demais para observação a olho nu |
Beta Trianguli Australi | Triângulo Austral | 2,85 | Segunda estrela mais brilhante do Triângulo Austral, com praticamente o mesmo brilho que Zeta Centauri. |
Delta Octantis | Oitante | 4,31 | Estrela quase no limiar da visibilidade humana, na constelação do Oitante, que é de difícil localização num céu urbano. |
A magnitude aparente é uma escala para comparação do brilho das estrelas conforme vistas por um observador na superfície da Terra. É um número decimal que pode ser positivo ou negativo. Quanto menor, mais brilhante. Quanto maior, mais fraca.
Pela tabela, podemos constatar que duas delas são invisíveis a olho nu – o que por si só já destrói a ideia de um asterismo: não podemos ver o raio completo no céu!
As outras são visíveis, principalmente Spica, Zeta do Centauro e Beta do Triângulo Austral. Mas já comprometemos a forma do raio. E há outro problema. Esse “quase asterismo” é enorme, abrangendo, na prática, estrelas muito mais brilhantes da constelação do Centauro, incluindo as “Guardas do Cruzeiro”: Hadar e Rigel Kentaurus.É difícil notar um asterismo se suas estrelas não se destacam o suficiente, ou quando estrelas mais brilhantes insistem em nos distrair nas proximidades.
Um dos lados do desenho do raio também passa bem ao lado do Cruzeiro do Sul. Ninguém no hemisfério Norte depois do Trópico de Câncer conseguirá ver, porque simplesmente o Cruzeiro do Sul (e o Oitante) não é visível nessas latitudes…
PEÇAS FALTANDO Duas estrelas fracas demais impedem que observemos o raio inteiro a olho nu. Clique para ampliar e ver detalhes não mostrados acima.
A região de Marte
Alguns noticiários deram destaque a outro fato que também precisa ser esclarecido: a “constelação de Bowie” ficaria na “região de Marte”.
Marte, como sabemos, é um planeta – palavra que vem do grego antigo planétes, que significa errante. São chamados assim precisamente porque vagueiam pelo céu e não tem um lugar fixo nele.
Não existe, portanto, um grupo de estrelas (qualquer que seja) que fique na “região de Marte”. O que acontece é que no início de 2016 (quando foi feita a homenagem), Marte estava nas proximidades de Spica, a estrela alfa de Virgem. Mas não ficou ali por muito tempo, pois o planeta “passeia” pelo Zodíaco e a constelação de Virgem é apenas parte do seu caminho.
Homenagens no céu
A ideia de homenagear David Bowie, nosso eterno Starman, no próprio firmamento é maravilhosa. E a Agência Espacial Europeia já tinha feito isso em 5 de janeiro de 2015, quando o asteroide 2008 YN3 passou a se chamar – oficialmente – asteroide David Bowie.
É que cometas e asteroides podem receber nome de pessoas. Estrelas e constelações, não. Por outro lado, observar o asteroide David Bowie requer habilidade em astronomia observacional e um bom telescópio.
Seria bom que qualquer um pudesse ver uma homenagem a David Bowie no céu. Infelizmente, as estrelas selecionadas pelo observatório Mira não ajudam muito. Elas abrangem uma área muito grande, chegando a ficar fora do alcance de observadores no hemisfério Norte; tem estrelas que não podemos ver a olho nu e, definitivamente, não fica na “região de Marte”.
Mas para que tem imaginação isso não é problema. Desde que nossa espécie começou a contemplar o céu temos o hábito de juntar os pontos e formar figuras com as estrelas.
Se você tentar, certamente encontrará o raio de Aladdin Sane em outra parte do céu. Pode não ser perfeito, como procuravam os astrônomos belgas, mas será a sua homenagem. O Starman está esperando no céu.
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