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NA NOITE DE 11 DE NOVEMBRO DE 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da época e exagerados nas Efemérides.

Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; saiu outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas do rio e córregos a sessenta palmos de plana.

Surgiu no pátio da Fazenda do Casco, de Hilário Cordeiro, um coitado fugitivo da catástrofe. Não vestia roupa, estava coberto apenas por uma manta de cobrir cavalos. Foi avistado por detrás do cercado das vacas. Era tão branco que parecia ter dentro da pele uma segunda claridade. Não se parecia com nenhum outro.

Hilário Cordeiro deu-lhe hospedagem, arrumando-lhe roupas e botinas. O moço parecia ter perdido a memória e o uso da fala. As pessoas foram à fazenda para vê-lo e gostaram dele. Quem mais se aproximou dele foi José Kakende, escravo meio alforriado de um músico sem juízo, ele mesmo tinha a mente meio conturbada, e vivia a pronunciar advertências e doidices. José Kakende queria tornar verdade a aparição que teria enxergado nas margens do Rio do Peixe, na véspera da catástrofe. Só não se afeiçoou ao moço Duarte Dias, malfeitor por reputação e pai da mais bela moça, Viviana.


Era tão branco que parecia ter dentro da pele uma segunda claridade

O moço foi levado à missa, onde não mostrou gostar ou desgostar. José Kakende procurava impor às pessoas sua visão: “o rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplandor[1], e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha amarela-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro desceram os Arcanjos, mediante todas, labaredas e rumores.”

Hilário Cordeiro e José Kakende traziam o moço para casa. Este viu o cego Nicolau e olhou-o demoradamente e acabou “dando rápida partícula, tirada da algibeira”. O cego, vendo que não era moeda, levou à boca, mas foi advertido pelo menino guia de que não seria artigo de comer, mas espécie de caroço de árvore.

O cego Nicolau guardou por vários meses a semente que, plantada, deu um azulado pé de flor da mais rara e inesperada, que tinha várias flores numa única, mas que não produziu outras sementes.

 

 

 

Duarte Dias veio acompanhado na exigência de levar consigo o moço, que seria um de seus parentes desaparecido, pois só poderia ser dos Rezendes, por causa de sua aparência. Hilário Cordeiro contestou, quase tornando tudo em desavença.

Hilário começou a ter sorte, “quer na saúde e paz, em sua casa”, prosperou nos negócios. O moço não trabalhava, ficava a passear pelo lugar. “Ele andava muito na lua”. Espiava as estrelas. Gostava de acender fogueiras. Contou-se que ele e o preto Kakende apareceram na casa da moça Viviana, que era bonita, mas que não se divertia como as outras moças.

Ele chegou, muito gentil, e pôs a palma da mão no seio dela, delicadamente, ela viu transformar sua tristeza. O pai, Duarte Dias, exigia que o moço se casasse, pois difamara a filha. O padre Bayão e outros mais velhos mostraram descabida fúria e que era insensatez. Viviana despertou para a alegria para todo o resto de sua vida.


“Ele andava muito na lua”. Espiava as estrelas.

No dia da Dedicação de Nossa Senhora das Neves e da Virgília da Dedicação, 5 de agosto, Duarte Dias foi à Fazenda do Casco pedindo para falar com Hilário. Suplicou para levar o moço para a sua casa. Não era por ambição ou impostura, mas por afeição.

O moço pegou-o pela mão junto com o preto Kakende e conduziu-o pelos campos, terras do próprio Duarte Dias. Mostrou onde devia cavar, tendo sido encontrado uma grupiara[2] de diamantes ou um panelão de dinheiro, segundo o que diversamente se contava. Daí em diante, Duarte Dias tornou-se um homem sucinto, virtuoso e bondoso.

No dia da venerada Santa Brígida, soube-se novamente do moço. Saíra na véspera pelos altos. Era tempo de trovoadas secas. José Kakende conta que o ajudara a acender nove fogueiras e que vira nuvens, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e entes. “Com a primeira luz do Sol, o moço se fora, tidas asas”.

[1] expressão popular para resplendor.
[2] Mesmo que gupiara, depósito de diamantes.


» Sobre o autor:
João Guimarães Rosa (1908-1967) foi um dos mais brilhantes autores da Terceira Geração do Modernismo, na Literatura brasileira. Sua obra “Primeiras Estórias” (1962), de onde foi extraído esse conto, é um conjunto de 21 narrativas de grande variedade temática. Guimarães Rosa consagrou-se com a publicação de “Grande Sertão Veredas” (1956), sua obra-prima.

» Publicação em mídia impressa:
• Amzalak, J. L. FUVEST 2001 – Literatura. Editora Navegar, São Paulo, p.225–226, 2000.